Gênio epidêmico 


 A homeopatia, sistema médico complexo de caráter holístico, é baseada no princípio vitalista e no uso da lei dos semelhantes, enunciada por Hipócrates no século IV a.C. Foi desenvolvida por Samuel Hahnemann no século XVIII. Após estudos e reflexões baseados na observação clínica e em experimentos realizados na época, Hahnemann sistematizou os princípios filosóficos e doutrinários da homeopatia em suas obras Organon da Arte de Curar e Doenças Crônicas. A partir daí, essa racionalidade médica experimentou grande expansão por várias regiões do mundo, estando hoje firmemente implantada em diversos países da Europa, das Américas e da Ásia. No Brasil, a homeopatia foi introduzida por Benoit Mure em 1840, tornando-se nova opção de tratamento. 

Em 1979, é fundada a Associação Médica Homeopática Brasileira (AMHB); em 1980, a homeopatia é reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (Resolução nº 1.000 ); em 1990, é criada a Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas (ABFH); em 1992, é reconhecida como especialidade farmacêutica pelo Conselho Federal de Farmácia (Resolução nº 232 ); em 1993, é criada a Associação Médico-Veterinária Homeopática Brasileira (AMVHB); e, em 1995, é reconhecida como especialidade pelo Conselho Federal de

Medicina Veterinária (Resolução nº 625). (1)


Em suas obras, o fundador da medicina homeopática discorre sobre filosofia, higiene, hábitos alimentares, anamnese, exame físico, classificação das doenças (com diagnósticos bem definidos), terapêutica, evolução, e até patologia. 

Neste artigo quero fazer comentários sobre trechos destes livros e como a medicina homeopática enxerga e lida com doenças epidêmicas. Principalmente diagnóstico e terapêutica.


Parágrafos extraídos do Organon (2) (leia com atenção principalmente as partes sublinhadas):


(...)

§ 72 Quanto ao primeiro ponto, o que se segue servirá de base geral e preliminar. As moléstias a que está sujeito o homem são ou processos mórbidos rápidos da força vital anormalmente perturbada, que têm a tendência de completar seu curso de modo mais ou menos rápido, mas sempre em um tempo moderado, as chamadas doenças agudas, ou são doenças de caráter tal que, com um início pequeno, muitas vezes imperceptível, afetam dinamicamente o organismo vivo, cada uma de seu modo peculiar, fazendo-o desviar, pouco a pouco, do estado normal de saúde, de forma que a energia vital automática, chamada força vital (princípio vital), cuja função é preservar a saúde, só lhes opõe no começo e no decorrer de seu curso, uma resistência imperfeita, inadequada e inútil, sendo por si incapaz de extingui-las, devendo sofrer impotentemente o seu alastramento, a ponto de ser cada vez mais perturbada até que, por fim, o organismo seja destruído. Estas doenças se chamam crônicas. São causadas pelo contágio dinâmico por um miasma crônico (*). 


§ 73 Quanto às moléstias agudas, podem ser de tal natureza que atacam os homens individualmente, sendo a causa excitante influências prejudiciais a que estavam especialmente expostas. Excessos ou insuficiências alimentares, impressões físicas intensas, frio ou calor excessivos, desgaste, esforços etc., ou irritações físicas, emoções ou algo semelhante, são causas excitantes de tais afecções febris; em realidade, contudo, são geralmente apenas uma explosão passageira de Psora latente, que retorna espontaneamente a seu estado latente se as moléstias não foram de caráter demasiado violento e foram logo dissipadas. Podem, também, ser de espécie tal que atacam diversas pessoas ao mesmo tempo, aqui e ali (esporadicamente), mediante influências meteóricas ou telúricas e agentes maléficos, sendo a suscetibilidade de ser morbidamente afetado por elas, possuída por apenas poucas pessoas ao mesmo tempo. Juntamente com essas estão as doenças em que diversas pessoas são atacadas por sofrimentos muito semelhantes, provenientes da mesma causa epidêmica; essas doenças, geralmente, se tornam infecciosas (contagiosas) quando assolam diversos grupos humanos densos. Daí surgem febres (*), em cada caso de natureza peculiar e, porque os casos de doença têm origem idêntica, determinam a todas elas um processo mórbido idêntico, que, se deixado à própria sorte, sem tratamento, em pouco tempo termina ou em morte ou no restabelecimento. As calamidades da guerra, inundações e fome, muitas vezes são as suas causas – às vezes são miasmas agudos peculiares que retornam da mesma maneira (daí serem conhecidos por algum nome tradicional), que ou atacam as pessoas apenas uma vez na vida, como a varíola, sarampo, coqueluche, a antiga febre escarlate lisa, vermelho claro (**) de Sydenham, a caxumba etc., ou as que reaparecem frequentemente de modo muito semelhante, a peste do Levante, a febre amarela do litoral, a cólera da Índia Oriental. 


§ 101 Pode ocorrer facilmente que no primeiro caso de um mal epidêmico que seja notado pelo médico, este não tenha imediatamente um quadro completo de sua natureza, visto ser somente mediante criteriosa observação de cada um desses males coletivos que ele pode se familiarizar com a totalidade de seus sinais e sintomas. O médico que observa cuidadosamente pode, contudo, pelo exame de seu primeiro ou segundo paciente, aproximar-se muitas vezes tanto do conhecimento do verdadeiro estado do mal, de modo a ter na sua mente um quadro característico dele, e obter êxito em achar um remédio conveniente, homeopaticamente adaptado.


§102 A medida que são anotados os sintomas de diversos casos desta espécie, esboça-se cada vez de modo mais completo o quadro da doença, não maior e de mais rico vocabulário, porém mais preciso (mais característico), abrangendo a peculiaridade desta doença coletiva, os sintomas gerais (por exemplo, falta de apetite, falta de sono etc.) e, por outro lado, os sintomas mais especiais e marcados, peculiares a apenas algumas doenças e de ocorrência mais rara, pelo menos na mesma combinação, sobressaem e constituem o que há de característico na doença(*). As vítimas da epidemia certamente contraíram a doença da mesma fonte, e sofreram, portanto, da mesma doença; mas toda a extensão de tal epidemia, e a totalidade de seus sintomas (o seu conhecimento, essencial para permitir-nos a escolha do remédio homeopático mais conveniente para esta série de sintomas, é obtido mediante um exame completo do quadro da doença), não pode ser conhecida por meio de somente um único paciente, só podendo ser perfeitamente deduzida (abstraída) e verificada pelos sofrimentos de diversos pacientes de constituições diferentes.

 (*) O médico que, nos primeiros casos, já tenha podido escolher um remédio que se aproxime do específico homeopático, poderá, nos casos subsequentes, verificar a segurança do remédio escolhido, ou então, descobrir um mais apropriado, aliás, o mais apropriado. 


§ 241 As epidemias de febre intermitente sob condições em que nenhuma é endêmica, são da natureza das doenças crônicas, compostas de crises agudas individuais; cada epidemia é de caráter peculiar, uniforme, comum a todos os indivíduos atacados, e quando este caráter se encontra na totalidade dos sintomas comuns a todos, leva-nos à descoberta do remédio (específico) homeopático adequado para todos os casos, que então quase sempre ajuda nos pacientes de saúde mediana antes da epidemia, isto é, que não sofriam cronicamente de Psora desenvolvida.



Assim, na Medicina Homeopática:


As epidemias são classificadas como doenças agudas coletivas epidêmicas. 

Para a melhor compreensão da doença, é necessária a coleta de sintomas de vários pacientes de diferentes constituições. 

A escolha do medicamento mais apropriado é feita baseada nos sintomas mais especiais, marcados e peculiares. Principalmente aqueles do quadro mais grave da doença.

Este medicamento recebe o nome de gênio epidêmico e pode ser fornecido a pacientes assintomáticos.

Pacientes com sintomas agudos, mesmo que devidos à epidemia, devem ser avaliados e medicados individualmente.

Pacientes com sintomas crônicos devem ser avaliados quanto a necessidade de medicamentos adequados a seus quadros de longa data, se intensos; e em relação a contra indicações à administração do gênio epidêmico.


OBS: As recomendações higiênicas e de isolamento social são medidas  importantíssimas e  devem ser cumpridas! 


(1) Ministério da Saúde. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS. 2a edição. Brasília, DF. 2015.  


(2) Hahnemann, Samuel. Organon der Heilkunst. 6a ed (primeira ed em 1810). Tradução: David Castro, Rezende Filho, Kamil Curi - GEHSP "Benoit Mure", 5a ed. brasileira. SP, 2013.